TEIXEIRA DE PASCOAES +Elegia da Solidão+ 1920. Tip. «Flor do Tamega» Amarante. +ELEGIA DA SOLIDÃO+ a Fernando Maristany O incendio do sol-pôr exala um fumo rôxo Que ás cousas vela a face... A macerada flôr da solidão renasce; O seu perfume é fria e branda magua, Bruma que já foi agua... Todo sombra e luar esvoaça o môcho; Uma nuvem enorme, ao longe, no poente Desvenda o coração que se deslumbra E abraza intimamente... O silencio a crescer, é onda que se espalha... Sente-se vir o outomno; é já noitinha, orvalha... Nos êrmos pinheiraes gemem as _noitibós_ E vultos de mulher, sumidos na penumbra, Passam cantando, além, com lagrimas na voz... Ó tristeza do mundo em tardes outomnaes! Longinqua dôr beijando-nos o rôsto... Crepusculo esfumado em intimo desgôsto, Bôca da noite acêsa em frios ais... Aparição soturna, vaga imagem Do mêdo e do misterio... Que solidão escura na paisagem! Tem phantasmas e cruzes, Tem ciprestes ao vento e moribundas luzes, Como se fosse um grande cemiterio. Olho em volta de mim, cheio de mêdo... Tudo É morta indiferença, espectro mudo! É o Verbo original arrefecido Em fragaredos brutos convertido; Extinto _Fiat Lux_, cadaver que fluctua No ceu nocturno e fundo... As almas que partiram d'este mundo Voltam na luz da lua. São phantasmas em neve amortalhados, Eternamente tristes e calados... São sonhos esvaidos, nevoa fria, Perfis de fumo e de melancolia... Vagas formas de imagem ilusoria Que a lua merencoria Molda em penumbra e cêra Na noite transparente de chimera. E todavia eu sinto Um acordar de instinto, Um palpitar de viva claridade Em cada cousa obscura... O aroma d'uma flôr quem sabe se é ternura? A noite não será phantastica saudade? A deusa que semeia estrelas no Infinito E corôa de lagrimas divinas A extatica tragedia das ruinas, Toda em versos de marmore e granito? Misteriosamente Sobe da terra um sonho transcendente; Emanação de mistica tristeza, Como o fumo d'um lar Que tem, junto do fogo, alminhas a rezar. Mas, ai, a Natureza, Reservada e offendida, afasta-se de nós! E na sua mudez arrefecida Congela a minha voz... Um silencio mortal separa-me de tudo! E como a sombra tragica da vida, Vou pelo mundo além; Enorme espectro mudo, Monstruosa presença de ninguem! Vivo sósinho e triste, assujeitado Ao meu phantasma errante e desgraçado, Em ermos de abandono; Ermos de Portugal, Onde a alma do sol divaga com o outomno N'um sempiterno idilio sepulcral. Sou nada, e quero ser! Quero ser tudo, e eu! Quero viver A vida misteriosa... Interrogo o silencio e a noite rumorosa De sombras e segredos... Contemplo comovido os astros e os penedos, E fico a ouvir as fontes n'um eterno Queixume que ergue a voz durante o negro inverno! Passo horas a aspirar o aroma d'uma flôr; Sombra que eu vejo em pétalas de côr Esparsas, ondeantes, Nas virgens claridades madrugantes. E a pura sensação que me domina, É qual longinqua Apparição divina Que me seduz e afaga... E de estrela em estrela é alma que divaga... Quantas vezes me sento á beira d'um abismo, Sobre escarpados blócos; E em mim perdido scismo... E ouço apenas cair nos tenebrosos fundos, As lagrimas de luz que vêm dos outros mundos E a neve do silencio em negros flócos. Absorvo-me na noite e no misterio; Erro, ao luar, em êrmo cemiterio, Sob as azas geladas do _nordeste_; Interrogo na vala a sombra do cipreste Rumorosa d'um funebre desgosto, Com gestos espectraes ás horas do sol-posto... E n'um doido, febril deslumbramento, Vejo-me sepultado em pensamento E durmo, durmo, durmo a Eternidade... Subito, acordo e volto á claridade! Sáio da fria cova; Uma sombra infantil cái d'esta imagem nova Que sobre mim baixou do sol a arder... Que alegria, meu Deus, tornar a ser! E sinto um novo amor por tudo quanto existe! Reso de joelhos vendo a tarde triste, Pintada a sangue, em longes de pinhaes... Vendo imagens de estrela em charcos de agua, O oiro caido ao chão das arvores outomnaes E as nevoas, frias tunicas de magua, Vestindo outeiros nus... Vendo o fumo de rusticas lareiras, Onde ha velhas fiando em negras preguiceiras O livido lençol que as ha de amortalhar, E rezam n'uma voz de sombra: _amen Jesus_... E ficam-se a scismar... Lá fóra, ouve-se uivar phantastica alcateia E andam Bruxas a rir... Rangem velhinhas portas, Treme a luz da candeia, A cinza sobe no ar, as brazas mortas Começam a luzir... Eu amo tudo: os ramos comovidos Em diáfano marmore esculpidos E esse velhinho tronco, em flôr, que renasceu Ao sentir a impressão azul que vem do ceu... Com que ternura beijo a luz do dia, Que em meus ouvidos de alma é lirica harmonia... Tenho ocultas palavras transcendentes Para as nuvens somnambulas, dormentes, Para a sombra nupcial e mistica d'um lirio, Para a afflição da inercia escrita n'um rochedo E para a Dôr que faz gritar um arvoredo Em noites de delirio. Mas este amor é grande soffrimento! De que nos serve amar o que não ama? Ser dolorosa chama, Sobre campos de neve, errando, ao vento? Andar a perseguir um Anjo fugitivo! Entre turbas de mortos não ser mais Do que um espectro vivo? Ser doido cataclismo! Ser desprendida folha, Entregue aos vendavaes, A voar, a voar em negros vôos afflictos! Olhar seu proprio sêr como quem olha O fundo d'um abysmo! E querendo esconder nas sombras o seu rôsto, Para chorar tão intimo desgosto, Ter de invocar a noite em altos gritos! Ó meu vulto perdido em trevas misteriosas! Cégo, a bater de encontro ás brutas cousas, Coberto de feridas, a sangrar... Sou como a sombra em lagrimas do mar; Nuvem desfeita em chuva; Um enorme phantasma de viuva A rezar e a chorar na solidão sem fim! Noite de horror sempre abraçada a mim! Ó noite, onde ha soluços e estertores E procissões infindas de clamores... Multidões de phantasticas mulheres, A cantar, a cantar sinistros _miséréres_... Sombras que o vento leva... Doidos perfis de fogo a rir na treva Que nos desvenda as lividas entranhas, Com nuvens e contornos de montanhas, Com arvores agitadas de anciedades, Com desgrenhadas, intimas saudades E tragicos desejos que arrefecem, Soes que n'um mar de sangue desfalecem! Sou a noite em que o mundo se consome: As cousas mais humildes e sem nome, As estrelas, os Deuses, tudo quanto Se amortalha na sombra do meu canto Que chora a sua eterna imperfeição! Sou tempestade, noite, solidão, O frio esquecimento, A sombra do luar bailando com o vento, Um gemido de nevoa, uma ternura, um ai, Phantasma d'uma lagrima que cáe. Ó triste solidão que me rodeia! Ó minha amada e pequenina aldeia! Ó aves a cantar para ninguem! Flôres que o inverno emurchece, Mãos erguidas na tarde que arrefece, Implorando o silencio, a noite, as cousas mortas E os ventos de terror batendo ás portas, Sem destino, a correr por esse mundo além! Almas crucificadas de abandono Entregues a uma eterna viuvez, Transparentes de fina palidez, Rezando ao Deus da Morte as orações do outomno... E tu, meu coração amante que palpitas Nas trevas infinitas! E ardes n'uma fogueira desvairada E doido te consomes para nada! Caio por terra morto de cançasso, A propria terra foge ao meu abraço! Foge de mim tambem meu proprio sêr, Vulto de cinza e poeira... Homens, nem mesmo a dôr é verdadeira! Sou ilusoria imagem a soffrer A tragica mentira que a formou! E pelo mundo vou Na êrma escuridão, chorando afflicto, Como creança perdida no Infinito, Entre soturnos Deuses fabulosos E mundos de terror vertiginosos... O alto sete-estrelo! Sol velhinho com brancas no cabelo! Silencio emudecendo a musica dos ninhos! Loucura que ergue o mar em ondas e soluços E, exausto, sobre a praia, o faz cair de bruços! Ó pinheiraes sósinhos! Ó tragedias de fraga e terra! Ó êrmos montes! Calvarios a sangrar! Corações de mulher desfeitos em luar! Martirisadas fontes! Medonhos arvoredos! Chimericos penedos! Lobos uivando a magua que os consome Á lua que prateia a serra fragarosa... Magros vultos de pêlo arripiado Com um sinistro olhar incendiado; Ferozes esqueletos que têm fome... Aparições da Plebe tenebrosa; Odios vivos, relampagos de dôr; Archotes acendidos, Na noite da desgraça transmitidos, De mão em mão, com tragico furor! Lobos famintos, doidos e profetas! Leões cheios de sombra e de melancolia! Feras que devoraes por simpatia, Bramindo, como cantam os poetas! Meu sonho é comungar a Natureza; Paisagens de alegria e de tristeza, Desertos ao luar, visões de outrora, Nuvens relampejando... O silencio nocturno, a musica da aurora Em notas de oiro voando... Quero sentir o amor, o soffrimento Que apaga a luz do sol e faz gritar o vento E sufoca de lagrimas as fontes Na solidão dos montes... Quero sentir o vago, o indefinido D'um astro a palpitar nas ondas reflectido. Quero ser a ilusão, a nuvem, a chimera, A divina alegria, a virgem Primavera Que nos desenha, além, n'um fundo escuro e frio, Doirada porta em flor aberta sobre o estio... Quero brilhar na luz e crepitar No fogo, e me perder em fumo pelo ar! Quero tecer os caules verdejantes E ser em rosa murcha orvalhos scintilantes. Quero abranger o mundo E o claro ceu profundo; E ter nos olhos meus As estrelas e as lagrimas de Deus, E em meus braços o gesto de carinho Que tem um ramo em flôr, Quando ampara e protege com amor Uma avesinha dentro do seu ninho... +(Da terceira Fala do «Jesus e Pan»)+ +FIM.+ 300 RÉIS --- Provided by LoyalBooks.com ---