_CALDAS CORDEIRO_ Alexandre Herculano MONTEIRO & C.ª--editores Agencia Universal de Publicações _Rua dos Retrozeiros, 75_ _LISBOA_ MDCCCXCIV ALEXANDRE HERCULANO _CALDAS CORDEIRO_ Alexandre Herculano MONTEIRO & C.ª--editores Agencia Universal de Publicações _Rua dos Retrozeiros, 75_ _LISBOA_ MDCCCXCIV _Typ. da Companhia Nacional Editora_ Escorço Biographico _Alexandre Herculano nasceu no Pateo do Gil, na rua de S. Bento, em 28 de março de 1810. Estudou com os padres de S. Filippe Nery, nas Necessidades; mas em 1831 envolveu-se na revolta do 4 d'infanteria contra o governo de D. Miguel e teve de fugir de Lisboa a bordo da fragata franceza «Melpomène.» D'aqui embarcou num navio inglez e visitou Plymouth, Folmouth, Jersey, S. Malô, Rennes, Granville. Tomou parte na expedição do Mindello. Em 1833 foi nomeado bibliothecario da bibliotheca do Porto, logar que conservou até 1836, data em que, espicaçado já pela mania burgueza do «descargo da consciencia e dos deveres cumpridos», se demittiu para não prestar juramento ao governo da contra-revolução. Em 1837 publica a «Voz do Propheta» e dois annos depois é nomeado pelo rei Fernando seu bibliothecario. É nesta epoca que dirige e escreve no «Panorama», onde publicou numerosos artigos, incluindo os romances: «O Monge de Cistér», «o Eurico», «O Bobo», «A Dama do pé-de-cabra», «O Parocho d'Aldea», etc, etc. Este periodo vae até 1846, em que sae o 1.º tomo da «Historia de Portugal», contendo as origens historicas de Portugal até ao reinado do 1.º rei; em 1847 apparece o 2.º que alcança até ao reinado de Sancho II; em 1849 o 3.º, que vae até D. Diniz; em 1853 o 4.º, que trata da descentralisação municipal. Depois publica a «Historia da Origem e Estabelecimento da Inquisição». Em 1853 é encarregado de dirigir a publicação dos «Monumentos Historicos de Portugal» com a dotação annual de 1.000$000 de réis. Como porém em 1856 fosse nomeado guarda-mór da Torre do Tombo um tal Joaquim José da Costa Macedo, Alexandre Herculano, que o odiava e estava muito atacado da monomania da perseguição, demitte-se de socio e secretario perpetuo da Academia, affirmando que «não podendo entrar no archivo da Torre do Tombo deixava por isso de trabalhar nos «Monumentos!» A Academia em outubro do mesmo anno reelege-o, e em dezembro nomea-o vice-presidente, mas Herculano escreve nova epistola persistindo no seu proposito, Na questão «Eu e o clero» leva ao apogeu essa monomania da perseguição, que toda a vida o dominou. Em 1861 regeita a nomeação de par do reino; em 1862 a de grã-cruz de S. Thiago, ordem que ultimamente se tem pendurado ao peito d'alguns actores. Ao regeitar esta ultima mercê, escreve com pacata ironia:_ _«No immenso consumo que se está fazendo, que se tem feito ha 30 annos, de distincções, de fitas, d'insignias, de fardas bordadas, de titulos, de graduações, de tratamentos, de rotolos nobiliarios, o homem do povo que queira e possa morrer com esta qualificação deve adquirir em menos de meio seculo extrema celebridade»._ _Em 1867, enojado do viver, recolhe-se a Val-de-Lobos, a celebre quinta perto de Santarem em que se dedicou á cultura do azeite. Vinha a miudo a Lisboa e os seus logares predilectos eram a livraria Bertrand e a casa do duque de Palmella. De vez em quando quebrava o silencio a que se obrigou, publicando um ou outro opusculo sobre as questões d'occasião._ _A 13 de setembro de 1877 morre em Val-de-Lobos, victima d'uma pneumonia. E doze annos depois é transferido da egreja d'Azoia, com official solemnidade, para os Jeronymos, onde hoje repousa num sumptuoso mausoléu, quasi visinho do tumulo mais modesto que Portugal reservou aos suppostos ossos de Camões._ _É costume dizer-se com algum abuso da metaphora, que ha mortos que se resuscitassem, vendo os escandalos contemporaneos, tornariam a morrer de vergonha. Qualquer critico carrancudo podia, seguindo esta tradicção, affirmar com algum bom senso que, se Herculano resuscitasse quando o trasladaram de Azoia para Belem, correria o discursador e os assistentes a cacete._ I IDÉAS GERAES Pontifice das lettras, Alexandre Herculano não teve, como muitos, a benevolencia, a fraqueza, uma cynica bondade de confundir os mediocres e os de talento; e perseguiu com o seu rancor todos os que a inutilidade levantara, elevados pela politica, pela camaradice, pela intriga. Foi um amarguroso e um triste. Por despeito? por tedio da sua epoca? por cançaço do seu espirito! Interrogações irrespondiveis, antes de se analysarem as causas que levantaram este homem á imminencia, d'onde nunca cahiu, e d'onde tanta vez lançou sobre o seu tempo os threnos e as maldições d'um propheta que não pede perdão para a miseria humana, antes invoca a colera de Deus sobre as velhas cidades corrompidas. Ezequiel d'uma epoca indigna de historia, só começou a rugir, não por mando de Jehovah, mas depois de conhecer os homens e de se ter entediado d'elles. O seu temperamento soturno, a sua mente convulsiva, o seu caracter d'uma rectidão, tão inabalavel, tão egoista--que hoje nos chega a parecer estudada--eram o producto d'uma hereditariedade que nunca se desmentiu e lhe deu esse bello cunho de portuguez, inquebrantavel e forte. Aos vinte annos, viu-se obrigado, por uma revolta militar do corpo a que pertencia, a refugiar-se no estrangeiro, por onde pairou algum tempo, visitando a Inglaterra e a França. Não sei se foi decisiva para a sua vocação essa viagem; o estado em que então se encontrava a Europa pode fazel-o crer. Uma outra era abria-se aos espiritos inquietos e convulsionarios. As nações, que durante quarenta annos se tinham agitado em guerras terriveis, nas epicas campanhas de Bonaparte, nas guerrilhas da Italia, na politica da Austria, sentiam a necessidade de pacificar-se. Começou pois a revolução na arte. O inquieto Chateaubriand e o desesperante Byron tinham feito as suas obras no meio das agitações d'essa Europa, de que elles invocaram o passado, poetisando-o com as saudosas melancolias que desperta em todas as mentes doloridas. Na Allemanha Goethe e os irmãos Schlegels, Leopardi na Italia, cunhavam os seus escriptos com esse desespero de descontentes, de sempre tristes. O sol das batalhas apagara-se em Santa Helena ao mesmo tempo que o sol da poesia expirava ao avistar a Grecia, que ia libertar. Bonaparte e Byron foram os deuses d'essa geração; e, para completar a trindade, poder-se-hia juntar-lhe Leopardi. Mas o poeta do _Amor e da Morte_, o atheu sem esperança, o heroico resignado, não teve a influencia dos dois primeiros, nem a quiz. O vencedor de Marengo e o poeta de _Manfredo_, convulsivos e desesperados, tiveram o enthusiasmo e a acção; o triste que escreveu essa admiravel elegia ao _Passaro Solitario_, em nada acreditava, senão na inutilidade da vida e no repouso da morte. Não era portanto um guia que escolhessem os que viam a existencia mais complicadamente. Byron, Vigny, Goethe, Musset, Shelley, Moore, Hugo, punham no que escreviam a nostalgia d'epocas remotas da historia, que elles lembravam com saudade. Outras indoles, partilhando o mesmo enthusiasmo, tentaram estudar esses seculos para reconstituil-os com os documentos e as memorias. D'aqui a historia e o romance historico. O seculo XVIII foi para Portugal e para França o seculo da decadencia da arte. Entre nós, á poesia das escolas chamadas _italiana_ e _hespanhola_ succedeu a _Arcadia_, agrupamento onde alguns vates semsaborões e massadores inventavam os meios de torcer a lingua em versos duros e corneos. A Francisco Rodrigues Lobo, a Sá de Menezes, a Santa Ritta Durão succederam Antonio Diniz, o engraçado do _Hyssope_, que hoje ninguem lê sem bocejar, o barbeiro Quita, Garção, Francisco Dias Gomes, e o nunca esquecido Filinto Elysio, o mais monstruoso escangalhador da simples e bella lingua portugueza, o mais inevitavel hymnifero de pindaricas, de epithalamios, de dithyrambos. Na prosa o abysmo era tão profundo: depois de Francisco Manoel de Mello, de fr. Luiz de Souza, de Manoel Bernardes, o padre Theodoro d'Almeida e o Candido Lusitano! O seculo XIX iniciou-se sem presagios de mudança. O velho Lafões na Academia chamada das sciencias, fazia propaganda hypocrita das graçolas semsaboronas de Voltaire; mas, cousa sempre digna de ser observada nos philosophos portuguezes que applaudiam os encyclopedistas:--todos assistiam ás novenas, aos _lausperennes_, ás procissões com que n'essa epoca caprichavam em passar o tempo. A essa Academia podia-se juntar outra, tambem ainda florescente: a Arcadia. Qualquer d'estas duas corporações eram gremios recreativos, onde o culto das musas era um passatempo e o escrever prosa um trabalho mechanico. Apenas o bilioso José Agostinho, o obsceno Bocage e o assucarado Tolentino, lançavam no concerto de numes uma nota alegre e discordante. Bocage escrevia: «Camões, grande Camões, quão semelhante «Acho teu fado ao meu quando os cotejo!» Respondia-lhe com uma tremenda descompostura o padre, que queria arranjar um Camões para uso da côrte de João VI e dos frades gracianos. O Tolentino, que nunca entendeu nada de litteratura, rabiscava versos, pedindo jantares e dinheiro. Não se levantava uma voz dolorosa ou eloquente, um grito de convulsivo desespero, uma poesia d'arrebatadora inspiração. Tudo era pautado, mesquinho, uniforme como uma ceremonia da côrte. O povo apenas, heroico resignado, conservava o grande refugio no desdem e na indifferença. Nenhum vate da Arcadia o cantou; nenhum escriptor punha a penna ao serviço da sua causa, para o despertar. Massa inconsciente, que formigava n'um zumbido, sempre insistente, sempre pavoroso, como onda de temporal quebrando-se em rochedo terrivel--que lhe importava a elle que D. João VI fugisse e os francezes invadissem o reino? Atrophiado durante dois seculos--o decimo septimo e o decimo oitavo da nossa era--que tão inexoravelmente começam a ser julgados por uma historia mais visualisadora--sem poder tirar d'entre os seus uma das altivas figuras que fazem revoluções; enterrado até á crapula, ao asco, á immundice, á lama, mas n'uma immundice quasi aterradora, tanto era enorme, quasi epica, tanto era medonha, ninguem lhe poude infiltrar energia, ninguem lhe soube provocar coragem. Paulino Cabral, Thomaz Pinto Brandão, Bocage poetisaram (e de que maneira!) a viéla, a boneja, a marafona, a meretriz, o frade vicioso e o fadista; Nicolau Tolentino, professor de grammatica e empregado publico, era o cantor dos papelinhos dos frizados das senhoras, das reuniões burguezas, dos chás, dos namoros a altas horas com despejos de fezes em cima do peralvilho embasbacado. Curiosos de certo, caracteristicos, pittorescos mesmo, e muito mais interessantes do que os Arcades, bachareis e magistrados que se apellidavam «pastores» e «cysnes», nenhum ainda assim deu ás obras o cunho e o relevo do talento que as torna impereciveis. E Bocage, José Agostinho, Tolentino eram os que representavam a litteratura livre e sem peias; eram os idolos de que o povo sabia os versos e a vida, e se apontavam nas ruas. Esses temperamentos que ficam assignalados n'uma epoca pelo amor, pelo heroismo, pela tristeza, pela infelicidade, já Portugal os não podia produzir. As lyricas de Camões e Bernardim Ribeiro, as desditas de Francisco Manoel de Mello, eram substituidas pelas piadas eroticas d'Elmano Sadino e as aventuras burguezas dos dois padres Macedos. Dos humildes que então soffriam, dos resignados que supportaram a vida, não chegou até nós um grito, um arranco, uma palavra. Almas desditosas e obscuras, ninguem soube pôr no papel os vossos desalentos, as vossas dores, as vossas hesitações! Quando a vossa crença era tentada, tinheis _Te-Deums_ para não cairdes na desconfiança do intendente Pina Manique; e para as humilhações heroicas, das vidas obscuras, as suaves melancolias, os crueis desesperos, Filinto Elysio entoava um epithalamio ou um dithyrambo, Bocage versejava sobre um mote brejeiro, Tolentino escrevia a _Funcção_, etc. Castilho em 1830 era ainda um arcade, Garrett quasi um ignorado. Em 1837 Herculano publicou anonymamente a _Voz do Propheta_--uma especie de threnos biblicos, d'uma eloquencia solemne e triste. Ahi se adivinhava a inclinação do novo escriptor para a historia, poetisada pela saudade e pelas recordações. Era a primeira chamma que se ateava n'esse espirito. Altivo, insoffrido e taciturno, resignando-se n'um trabalho em que as mais das vezes tinha de martellar o cerebro e soffrear os impetos da imaginação poetica, é com enthusiasmo e vibração que escreve as paginas mais alentadoras da sua _Historia_, os quadros mais artisticos e definitivos dos seus romances, os versos mais ricos das suas poesias. Visitando a Inglaterra e a França, a saudade da patria amargurou-lhe o prazer da forçada viagem. Nas horas vagas d'essa vida de tribulações e cuidados, vida errante, refugiada apenas em longos labores e lentas meditações, pezou bem o seu destino. Tinha um temperamento de ferro; em cousas que a sua vontade decidisse, era inquebrantavel. Não se bandeou na politica, não se apulhou na litteratice. Pobre chimerico! acreditou na honra, desdenhoso dos estadistas e dos parlamentares; teve esperança na arte pura, e cultivou-a como o seu unico idolo. Depois tambem cultivou o azeite de Val-de-Lobos com idolatria, por que estava farto da epoca e dos homens. «Dá vontade de morrer!» disse elle. Hoje qualquer noticiarista, tendo apanhado alguma indigestão de lagosta ou sardinhas, repete a miudo a exclamação, confundindo assim a vontade de morrer com a de vomitar. Joseph Prudhomme disséra em tempos que «a invasão das diversas attribuições produz em tudo a anarchia», e como elle ainda é autoridade para as classes burguezas e dominantes, não nos é licito duvidar. Que a litteratice ou a monomania litteraria invade tudo e todos, é inegavel. Ainda ha pouco, uma notabilidade medica, o sr. Manoel Bento de Souza, apercebendo-se d'isto, fez no _Elogio do Doutor Antonio Maria Barboza_ a comparação de tres medicos-operadores com tres litteratos, explicando que usava d'esse meio para que os que não entendiam de medicina o comprehendessem melhor. Imagine-se Sainte-Beuve, Taine e o sr. Oscar Wilde applicando este processo á critica! O esthetico inglez, por exemplo, comparando Morel-Makenzie com Dante Gabriel Rossetti; o philosopho das _Origens da França Contemporanea_ approximando a maneira d'operar de Robespierre (e que medonho operador!) da do velho anatomista Bichat. Para quê insistir sobre as surprezas que este methodo provocaria a cada momento? Ao espirito severo d'Herculano, cerrado ao moderno, o espectaculo das contradicções e das inconsciencias da nossa epoca repugnava. Por isso a sua obra foi uma evocação do passado e dos tempos gloriosos. Elle escrevera no _Bobo_ (pag. 13-14) estas linhas: «Pobres, fracos, humilhados, depois dos tão formosos dias de poderio e renome, que nos resta senão o passado? Lá temos os thesouros dos nossos affectos e contentamentos. Sejam as memorias da patria, que tivemos, o anjo de Deus que nos revoque á energia social e aos sanctos affectos da nacionalidade. Que todos aquelles a quem o engenho e o estudo habilitam para os graves e profundos trabalhos da historia, se dediquem a ella. No meio d'uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o passado é uma especie de sacerdocio. Exercitem-no os que podem e sabem; porque não o fazer é um crime. E a arte? que a arte em todas as suas formas externas represente este nobre pensamento; que _o drama, o poema, o romance sejam sempre um echo das eras poeticas da nossa terra_. Que o povo encontre em tudo e por toda a parte o grande vulto dos seus antepassados. _Ser-lhe-ha amarga a comparação_. Mas como ao innocentinho da Jerusalem Libertada, homens da arte, aspergi de suave licor a borda da taça onde está o remedio que póde salval-o.» Cumpriu a missão que impozera ao espirito? É analysando-lhe as diversas phases da obra que se póde responder á interrogação. II O POETA N'uns a poesia nasce com as primeiras illusões da mocidade, os primeiros amores, as suaves chimeras; n'outros, quando as desillusões começam a enevoar a alma, as tristezas a pairar na mente, o coração a seccar-se, a ser fugitivas as horas alegres, continuos e uniformes os dias funebres, e o sopro da traição envenena os amantes, é que a poesia ergue os primeiros vôos, triste e amargorosa, como as aves da tempestade. Dos primeiros são raros os que conservam a frescura e pureza da musa; os annos augmentam, as flôres murcham, e quando se quer voltar, por saudade ou por distracção, ao trabalho mitigador, as palavras embrulham-se, as rimas escasseam e o cerebro torturado só consegue periodos tortuosos e seccos, concepções alambicadas e banaes. Alguns, ensaiando a rima e o verso, procuram adquirir á custa d'um trabalho seguido, a magnifica força da forma solida e quasi definitiva: são os artistas, e as suas estrophes sonoras teem sons musicaes. Byron, Moore e Shelley alliaram os primores da forma á sublimidade da imaginação. Mesmo a lingua ingleza, dulcificada pela cuidadosa versificação de Milton, Pope, Chatterton e Cowper, attingiu com os grandes poetas do começo d'este seculo uma perfeição inegualavel. Em França, ao contrario, teve de operar-se um completo trabalho de renovação. Os pequenos abbades libertinos e poetastros, os fazedores de novellas patetas e assucaradas, nunca cuidaram do estylo. O verso cultivaram-n'o os padres Florian e Delile, a quem Rivarol disse uma vez, vendo-o com um rôlo de manuscriptos «Ah, senhor, se não o conhecessem, roubavam-n'o!» A prosa era manejada por Voltaire. Se o enorme talento de Diderot e o doloroso genio de Jean-Jacques, estavam distantes do lodaçal em que se afogavam quasi todos, o chistoso Piron, Gresset e toda essa horda de pandegos semsaborões, concorreram para escangalhar a lingua, que Montesquieu, La Fontaine e os escriptores ligados pela tradicção aos do seculo XVII, tinham enriquecido. Coube a gloria d'iniciar essa revolta contra as velhas formas, a estreita syntaxe, a poetica convencional e restricta, ao homem contradictorio e enigmatico que se chamou Chateaubriand. Em 1801 appareceu o _Genio do Christianismo_. A geração inquieta e guerreira, exhausta da materialidade dos insipidos deuses do seculo anterior, comprehendeu que nascera um escriptor, um coração insoffrido, um espirito pairante. A forma d'esse livro é quasi classica; mas no emtanto, atravez aquellas paginas, quanta melancolia, quanta amorosidade; ás vezes phrases dignas de Shakespeare, Balzac ou Byron, como essa do episodio de _René_: «foule, vaste désert d'hommes!» Hugo veio fazer no verso o que Chateaubriand fizera na prosa; deu á lingua assucarada e debil, vibração, enthusiasmo e consistencia. Appareceu ainda outro, embebido nos poetas inglezes, um cysne, mirando-se nos limpidos lagos de crystal, com o olhar todo offuscado pelas grandes paysagens dos Pyrineos. Era Vigny, o cantor d'_Eloa_ e _Dolorida_, o philosopho da _Colera de Sansão_, esse grande e symbolico poema do fatalismo no amor, que começa pelos versos celebres: «Prés de ce compagnon, dont le coeur n'est pas sur «La femme, enfant malade et douze fois impur.» Estes revolucionarios deram á prosa e ao verso uma symetria, uma profundeza, uma sumptuosidade desconhecida. Muitas das obras d'esta epoca trazem um cunho d'invocação historica em bloco. Vigny formulara o seu processo no prefacio de _Cinq Mars_: «tudo _devia_ ter succedido assim.» Portugal até 1836 seguira distanciadamente o movimento de renovação. As primeiras poesias d'Herculano resumbram a nostalgia da patria e recordam as suas luctas de soldado. O sentimento que em todas ellas repassa é uma tristeza de saudoso, uma vibração de descontente. A forma é frouxa como em quasi todos os seus versos. Ha um phenomeno curioso a observar nas grandes individualidades litterarias: sentem, transplantam o sentir, alcançam a nota mais elevada do pathetico, mas os seus versos são coxos e maus, e muitas vezes inferiores, segundo as regras da poetica, aos d'um banal poeta de lyrismos discretos e perfumados. Camillo e Herculano são d'isso exemplos culminantes. Estes dois grandes homens tinham demasiado pudor e orgulho para encherem columnas de versos de vulgarismos falsos e mystificações irritantes. Herculano, apezar de tudo, attinge os acumes da elevação poetica nas poesias religiosas, essas meditações profundas e serenas, em que elle se identifica com Klopstock, misturando a taciturnidade da sua indole aos arrebatamentos do seu espirito. N'esta indole triste os primeiros vôos da musa pairam por sobre as velhas torres gothicas e mouriscas, as cathedraes rendilhadas, os castellos agoirentos e enegrecidos. Era a primeira chama que se ateava n'esse insoffrido. A _Cruz Mutilada_ testemunha eloquentemente como o seu talento attinge o sublime, elevado nas azas da crença e da saudade; e o velho cerro de Cintra e a gruta que avista o mar, d'onde se enxergou a primeira caravela vinda da India, foram o amphitheatro escolhido por este homem para ahi se inspirar no maravilhoso canto, que mais parece um hymno de Santo Agostinho ou S. Thomaz. _Deus_, a _Semana Santa_, a _Arrabida_ são, como a _Cruz_, o grandioso da sua obra em verso. E não direi da sua obra poetica, por que todos os seus trabalhos respiram poesia--a mais altiva, a mais elevada. É curioso como este homem, acusado de secco, duro, rancoroso, incapaz d'abrir o seu coração ao amor, fosse o artista que escreveu as paginas arrebatadas e potentes de ciume, de paixão, d'embates amorosos entre o espirito e a carne; paginas, que dilaceram, fazem tombar lagrimas e constituem as mais admiravelmente escriptas do _Monge de Cistér_, do _Bobo_, do _Eurico_. III O ROMANCISTA Em Inglaterra os romances de Scott invocavam a idade-media as cruzadas, os velhos burgos. Poetas, romancistas, escriptores pendiam para os estudos e para a critica historica. Os romances mesmo e as memorias, que tão cultivadas teem sido nos ultimos cincoenta annos d'este seculo, são apenas variedades da historia e da critica. O pensamento do romancista é identico ao do critico e do historiador. Tem de documentar e historiar um meio, uma epoca, onde se agitam personagens contemporaneos ou remotos. É assim que nos livros do sr. Henry James, n'esses pequenos contos, que nos parecem rabiscados na meza de fumar d'algum rico hotel das grandes cidades, está toda a vida, toda a ancia, toda a nostalgia, e todas as hesitações nervosas d'essa geração fluctuante, que emigrou para a America, se regenerou e fortificou ao contacto d'outro meio e d'outro clima, e só se definha e soffre, quando inveja e macaqueia essa velha Europa, onde tantos vêem matar as saudades e desedentar a sede dos vicios morbidos que herdaram. Quando ha cincoenta annos appareceu o _Monge de Cistér_, o romance historico não existia em Portugal. Como reflexo pallido da litteratura ingleza, apparecera entre nós uma ou outra tentativa isolada e obscura. Foi Herculano que o vulgarisou; elle mesmo nas _Lendas e Narrativas_ o confessa, orgulhando-se que os seus ensaios provocassem a publicação do _Arco de Sant'Anna_, do _Anno na Côrte_, _Odio Velho_, _O Conde de Castella_, _Irmãos Carvajales_, _O que foram Portuguezes_. Estes trabalhos, excepto o primeiro, são productos mediocres de cerebros cançados; a curiosidade que os recebeu tombou, com o tempo, em gelida indifferença. Quem lê os romances d'Herculano não póde procurar n'elles nem a analyse da vida, nem mesmo o estudo exacto da epoca em que se passam. O poeta triumpha sempre e, se aqui e ali, apparece o historiador--ou melhor o cerebro transbordando de conhecimentos historicos e obrigado a revelal-os em tudo quanto escrevesse--o visualisador sempre nos arrasta e empolga com as suas illusões. O que vibra com uma intuição admiravel nos seus romances, é a nota desesperante do amor. As paixões d'esses personagens eram um fogo que os minava e consumia. A religião e o despotismo medieval carregaram ainda mais funebremente o espirito dos barbaros. Qualquer sentimento que os escravisasse, era para esses brutaes uma força, como que sobrehumana, contra a qual luctavam, subjugados pelas superstições e pelos prejuizos. O Egas Moniz do _Bobo_, o Eurico, o Vasco do _Monge de Cistér_, o D. Fernando das _Arrhas por fôro d'Hespanha_ são entes que se movem na vida sob a acção dominadora d'um amor, tão despotico como a tyrannia d'essa idade de ferro. Estes amorosos são como leões algemados que a cada instante rugem o seu desespero. O sempre triste Eurico[1] escreve a Theodemiro: «Examina bem a consciencia e diz-me qual é para os corações puros e nobres o motivo immenso, irresistivel das ambições do poder, da opulencia, do renome? É um só--a mulher: é esse o termo final de todos os nossos sonhos, de todas as nossas esperanças, de todos os nossos desejos. Para o que encontrou na terra aquella que deve amar para sempre, aquella que é a realidade do typo ideal que desde o berço trouxe estampado na alma, a mira das mais exaltadas paixões é a aureola celestial que cinge a fronte da virgem, idolo das suas adorações.» ..................................................................... «Tirae do mundo a mulher, e a ambição desapparecerá de todas as almas generosas. Realidade ou desejo incerto, o amor é o elemento primitivo da actividade interior; é a causa, o fim, e o resumo de todos os effeitos humanos. Theodemiro eu amei como ninguem, talvez, ainda amára. Este amor foi desprezado e ludibriado e, depois, comprimido pelo desprezo e pelo ludibrio no fundo do coração do teu pobre amigo. Sabes o que faz um amor immenso assim recalcado?--Devora e consome o futuro e entenebrece para sempre o horisonte da vida. Nada ha, depois d'isso, que possa restaurar o que elle tragou: nada que possa rasgar as trevas que elle estendeu. No mesmo sepulchro não ha porvir d'esperança, nem, porventura, luz de consolação; porque o passamento do corpo precedeu a morte do espirito.» [1] _Eurico_ pag. 76, Lisboa, 1864. D. Fernando, o doloroso apaixonado, conhecendo a ignominia a que desceu, diz a Leonor Telles: «É por que sabes que esse amor não pôde perecer, que esse amor é como um fado escripto lá em cima--interrompeu D. Fernando--que tu me fazes tingir as mãos de sangue, para satisfazer as tuas crueis vinganças; é por que sabes que esgoto sempre o calix das ignominias quando as tuas mãos m'o apresentam, que me sacias de deshonra. Terás, acaso, algum dia piedade d'aquelle que fizeste teu servo, e que não póde esquivar-se a ser tua victima[2].» [2] _Lendas e Narrativas_, 1.º vol. Lisboa, 1865. O sombrio Egas, despedindo-se de Dulce, diz-lhe: «Vae-se o vulto do meu corpo Mas eu não; Que a teus pés cá fica morto O coração.»[3] [3] _O Bobo_, pag. 145, Lisboa, 1878. Herculano tocou como poucos na eterna chaga da alma apaixonada:--a duvida, a desconfiança. E como o ciume e o desespero se manifestam psychologicamente n'uma inalteravel uniformidade em todas as epocas, segue-se que um Egas, um Fernando, um Vasco, um Eurico, são typos caracteristicos dos amorosos e tristes. IV O HISTORIADOR Vimos como as principaes figuras intellectuaes do começo do seculo penderam para as reconstituições do passado. Em Inglaterra Hume abrira no seculo anterior a corrente que depois Lingard e Macaulay proseguiram; em França Augustin Thierry, Quinet, Guizot dão aos estudos historicos uma nova phase. Herculano seguiu esta corrente, que dominou toda a obra. O investigador surgiu primeiro do que o poeta ou poeta fez surgir o investigador? Um e outro apparecem tão confundidos em todos os seus livros que é impossivel responder á interrogação. Que o historiador não destruiu a alma poetisadora, vê-se logo no 1.º volume da Historia de Portugal, que fecha com estas saudosas palavras sobre o nosso primeiro rei: «Se uma crença de paz e de humildade não consente que Roma lhe conceda essa corôa, outra religião tambem veneranda, a da patria, nos ensina que, ao passarmos pelo pallido e carcomido portal da igreja de Santa Cruz, vamos saudar as cinzas d'aquelle homem, sem o qual não existiria hoje a nação portugueza, e, porventura, nem sequer o nome de Portugal.» O trabalho sobre a descentralisação municipal da idade-media, inserto no 4.º volume da _Historia_ tem sido, até hoje, considerado como obra definitiva. O peso da investigação carregara a indole d'este homem d'estudo; o seu cerebro transbordou. Planeando apenas escrever sobre Portugal na idade-media, viu que podia alargar os seus trabalhos; mas a polemica provocada pela publicação do 1.º tomo da sua _Historia_, serviu-lhe de pretexto para fingir que truncava um trabalho, que elle mesmo talvez--apenas um momento--pensasse em proseguir. V O POLITICO Quando em 1840 Herculano foi eleito deputado por Cintra, teve occasião de pedir a palavra no parlamento; tinha uns apontamentos que consultava, á medida que ia falando. O que seria a camara dos deputados em 1840? Cheia d'abbades somnolentos, de provincianos ridiculos, de bachareis grotescos e analphabetos inconscientes, não é hoje muito facil fazer uma idéa approximada do que era então esse antro de palradores. No meio do discurso, um pouco interrompido, do deputado por Cintra ouviu-se o grito de: «larga a sebenta!» que produziu o riso contido d'aquella camara patusca. O homem que pronunciou esta phrase symbolisou depois a tagarelice parlamentar e petulante no seu apogeu; palrou durante vinte e tantos annos, acclamado por uma burguezia que lhe admirava a cabeça e a careca, fez discursos que são o mais irresistivel narcotico dos poucos que teem a coragem de consultal-os, morreu conhecido e feliz. Tem duas estatuas--uma defronte de S. Bento, d'essa casa de cuja inutilidade prejudicial elle foi o mais triste e curioso symbolo, outra em Aveiro. Chamou-se José Estevão. Alexandre Herculano, ferido no seu orgulho, nunca mais quiz frequentar aquella feira de gado. Os seus trabalhos resumbram todos um invencivel rancor aos politicos e á politica. A sua indole triste sombreou-se. O despeito e o tedio azedou-lhe o caracter. Adivinhou a vulgar corrupção que se alastrava por todas as classes e, com a integridade inherente ao seu espirito, fugiu. Esta deserção d'um campo, onde o paiz lhe podia merecer tantos serviços, era inevitavel. O presente não o tentava. Com uma ancia vulgar nos espiritos que chegaram ás cumiadas da cultura intellectual, tentou brutificar-se na vida do campo, beber a grandes tragos a alegria que a natureza entorna na alma dos animaes e das plantas. Mas estava muito intellectualisado. O brado que levantou a favor dos monges e dos padres pobres, foi recebido pelos livres-pensadores burguezes como uma contradição com os ataques na celebre questão _Eu e o Clero_. A Herculano, temperamento religioso por educação, repugnava, o abandono e a miseria em que o governo deixara os antigos frades, negando-se mesmo a pagar o insignificante subsidio que promettera aos que se secularisassem. Á sua indole, estreita e inquebrantavel em questões de rectidão, custava a comprehender que os ministros renegassem todos os programmas com que subiam ao poder e faltassem a todas as promessas, como se elles tivessem sido inventados para outra cousa! Esta surpreza n'um homem ambicioso, transformou-se mais tarde n'um rancor que, nos ultimos annos da sua vida, se affogou em desprezo por tudo que dissesse respeito á politica. D. Pedro V, de quem Herculano foi o mentor, consultava-o a miudo sobre os negocios do estado e a maneira de resolvel-os. Herculano gostava d'este papel de ministro do culto e, póde affiançar-se que se o tivesse exercido por mais tempo, muitos dos que elle desprezava, teriam sentido por detraz do manto do rei, a pata do leão, atirando-os á insignificancia d'onde nunca deviam ter saido. Este poder, exercido por um mais longo prazo, se o reinado de D. Pedro V tivesse sido duradouro, é forçoso dizel-o, embora não muito democratico, seria benefico e talvez evitasse a lenta agonia em que Portugal agora se revolve. Mas quiz o destino que tal não succedesse. Herculano, apenas chegou a Lisboa a rainha Estephania, sentiu o espirito accesso em ciume contra a mulher que ia dominar o rei com o mesmo, ou talvez maior, prestigio com que elle--o grande intellectual--tinha dominado. Este resentimento explica-se bem: Herculano olhava D. Pedro com o carinho affectuoso d'um pae e, o que mais é, d'um pae que houvesse podido identificar á sua alma a alma d'esse filho do espirito. A rainha fôra para a indole religiosa e casta de D. Pedro a esposa, a symbolisadora do amor santo; Herculano julgou que ella vinha roubar-lhe uma parte do dominio que elle exercia no rei--e odiou-a. Este odio, comprehende-se bem, nunca revestiu as formas bruscas d'um completo rompimento; e, como provinha d'um sentimento do espirito que, se não era muito elevado, estava muito longe de ser mesquinho, manifestou-se apenas por pequenos embates de palavras e dois ou tres casos anecdoticos mais ou menos conhecidos. Por morte da rainha e do rei, Herculano, que já quasi se affastara do paço, foge e vae isolar-se em Val-de-Lobos. A historia em Portugal acaba no reinado de D. Pedro V. Com Luiz I começa essa longa opera-buffa, ridicula e sinistra a um tempo, com um cunho tão enorme de corrupção e de infamia, a que se assiste n'um suffocamento de indignação e lagrimas, que arrastou Portugal a este fim desesperado. O centenario de Camões foi o unico ponto claro no horisonte negro. Mas Herculano morreu tres annos antes de se realisar esse grande acontecimento nacional--onde Portugal affirmou pela ultima vez a sua força desesperada no meio da agonia. Herculano, podendo desempenhar um elevado papel na politica portugueza, nada fez. O unico homem em quem elle exercera uma salutar influencia--o rei--morreu, deixando o seu mentor afogado em nojo pelos homens e pela existencia. N'algumas maneiras de pensar e de sentir, Herculano revelou-se superiormente; depois a nausea pela vida e pelos viventes, communicou-lhe esse desprezo que pareceu tão grande porque tombava de muito alto, e lhe deu o cunho d'intransigencia e de força, n'um tempo em que todos são maleaveis e fracos. Analysei as manifestações intellectuaes da altiva personalidade a quem a burguezia idolatrou, mais por ouvir contar certas particularidades rudes do seu viver, do que por lhe ter lido as obras. Homem d'um seculo convulsionado e contradictorio foi, como elle, impersistente e convulsivo. O critico exclusivista que condemnasse qualquer obra por trazer uma rajada d'azedume, esquecendo-se da epoca em que foi feita, seria tão extraordinario como o medico que quizesse persuadir um agonisante de que estava curado. É impossivel exigir d'alguem que seja alegre, que tenha saude e fé em tempos de tristeza, de desalento e de duvida. Herculano podia repetir a phrase d'um homem muito diverso d'elle, o melancolico Amiel: «sem ter ainda morrido, sou uma alma d'outro mundo; os outros parecem-me sonhos, e eu sou um sonho dos outros.» O homem que foi um poetisador sombrio e solitario, não devia amar um seculo de sciencia e d'industria. Não o amou Herculano, como o não amam os espiritos atormentados a quem o tedio do viver exagerou a nostalgia pelos tempos que passaram--e onde tantos doloridos põem o ideal d'uma felicidade, chimerica e impossivel para os grandes taciturnos. INDICE _Escorço biographico_ 5 I--Idéas geraes 13 II--O poeta 31 III--O romancista 40 IV--O historiador 49 V--O politico 51 Obras de Caldas Cordeiro _O Marquez de Pombal._ Porto, 1890. 100 _Envelhecer_, (contos).--Lisboa, 1892. 300 _Corações inquietos_, (romance).--Lisboa, 1893. 500 _Alexandre Herculano_, (estudo).--Lisboa, 1894. 300 --- Provided by LoyalBooks.com ---